quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Perigo Fascista 2

Hoje tinha programado escrever sobre outra coisa que não fosse política, fascismo e congêneres. Já tinha começado a fazer um texto sobre a poesia moderna persiana. Especificamente sobre a poesia do multi artista iraniano Abbas Kiarostami.
Durante anos fui um viciado em política. Boa parte da minha pequena biblioteca é formada por livros que tratam disso. Passava horas e horas lendo sobre partidos, instituições, esquerda, direita, marxismo e os ismos todos. Ficava irritado, discutia e perdia a paciência com a desonestidade intelectual de professores e a lavagem cerebral que se fazia nas salas de aula. Ao invés de nos ensinarem os rios que cortam o Brasil, aprendíamos que "De Fernando em Fernando o Brasil vai se ferrando".
Até que chegou uma hora que cansei disso. Tentei me concentrar no que realmente valia a pena. Tornei-me um obcecado por Bruno Tolentino, Fernando Pessoa, Manoel de Barros, Mário de Sá Carneiro. Tenho a impressão que isso explica um pouco a minha decisão de morar em Veneza. Morar em Veneza é como se ausentar do mundo, deste mundo. Veneza é impermeável a modernidade.
Mas claro que isso é uma ilusão. "Caelum, non animum mutand qui trans mare currunt". Os que cruzam o mar mudam de céu, não de espírito; Horácio. E por isso tento fazer como Ingmar Bergman ". Eu sempre soube atrelar meus demônios a minha carroça. Eles continuam me atormentando, mas eu os obrigo a me ser úteis."
Fiz essa digressão toda como uma forma de pedido de desculpas a mim mesmo, para poder comentar uma noticia.
Leio no Corriere della Sera, que a câmara de deputados italiana aprovou um projeto de lei que cria salas de aula exclusivamente para estrangeiros. Isso mesmo.
O projeto, de autoria do deputado Roberto Cota, prevê que os estudantes estrangeiros, que não possuem um bom domínio da língua italiana, devam estudar em uma classe separada. De acordo com o deputado, um dos lideres do partido xenófobo, Lega Nord, a falta de destreza dos imigrantes com a língua italiana prejudica o bom andamento das aulas e acaba por atrapalhar os garotos italianos.
É assustadora a velocidade com que a intolerância cresce na Itália. Propostas semelhantes como a do deputado Roberto Cota, até pouco tempo não eram nem levadas em consideração, faziam parte do folclore político. Tinham o mesmo valor que a bomba atômica do Enéas.
O que essa lei cria na prática são estudantes de primeira e segunda classe. O argumento dos que defendem a lei é que isso favorece uma real integração. Pergunto-me como pode existir integração sem um mínimo de contato. Onde mais o filho de um paquistanês pode aprender italiano senão em uma escola italiana, conversando com garotos italianos.
Além disso, a lei prevê que para um numero x de estudantes estrangeiros deve haver um percentual mínimo de italianos. Isso para evitar que uma sala de aula italiana tenha mais estudantes estrangeiros que italianos, mesmo que aqueles saibam a língua de Dante.
A Itália sempre foi um país de emigrantes. E não me consta que o governo Brasileiro tenha criado classes especificas para os filhos dos imigrantes. E foi justamente essa condição histórica italiana que permitiu que Bruno Tolentino escrevesse um dos seus mais belos poemas. Chiesa Dei Tolentini (Veneza 1567-1967)
Chiesa Dei Tolentini (Veneza 1567-1967)
Oculto reino nosso
onde cantam os ossos
daqueles cuja voz
ecoa em nosso eco,
e em cada um de nòs.
Nas lajes sem memòria
cruzam-se a luz do do dia
e o cantochão dos ossos :
irrequieta harmonia,
sepulto reino nosso
que em silencio te avias
rente às heras sombrias
e severas do púlpito.
Eco da luza canora.
Milagre oculto.
Só uma observação. Nas escolas alemãs os garotos italianos são, dentre os europeus, os que possuem o pior rendimento. Quem sabe não seria uma boa idéia a criação de uma classe especial para esses ragazzi. Uma coisa tipo Luziana Lanna. Pessoas diferentes precisam de métodos diferentes.

Relógio de ponto

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.

Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas com o verniz das estrelas.

Alberto da Cunha Melo